Carta a uma mulher inadequada

Carta a uma mulher inadequada, fotografia e carta, 2020

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Oi amore,

Escrevo essa carta na certeza de que há entre nós amor e um abismo.

O acaso que provocou nosso encontro me colocou diante de um vão intransponível. Vejo você lá do outro lado e daqui vejo a mim mesma como a mãe, a avó, a tia, a professora e como todas as outras que antes de mim exerceram dedicadas e impunes seus papéis de afeto, submissão e opressão.

Que tipo de amor construíram pra nós? O quanto ele me custa? O quanto ele te custa?

Lembro que um dia, depois de uma situação estranha, você escreveu: eu te amo. Essas letras queimaram na tela, na minha retina. Tudo que você é queima.

Sou uma mulher que preserva o fascínio pelo fogo, mas que aprendeu a vida toda o medo de se queimar. Você não é essa mulher.
– Graças a Deus! – maiúsculo, masculino – diria eu sem pensar.
– Graças à Deusa! –maiúscula, pagã – diria você sempre pensando.
Você entendeu logo que era necessário ser bruxa sem medo da fogueira.

Você é uma mulher inadequada. Eu sou uma mulher adequada.
O que há de inadequado em você denuncia o que há de adequado em mim.
Corresponder às expectativas, é o que se espera de nós. E assim se sofre de adequação e de inadequação.

Carne exposta, esfolada, corte profundo… você aprendeu cedo. Eu não: tampei com curativo, nem pude ver sangrar.

Agora fabrico garras para mim. Mas que garras são essas?
São muito mais desejo do que risco de corte.
Vejo as suas, me fascinam e assustam. Queria usá-las, mas não posso. Tenho que fabricar as minhas próprias, porém elas seguem sempre parecendo falsas.

Te imagino sempre debochando secretamente ou gargalhando alto mesmo da minha ingenuidade. Porque raios –caralhos, bucetas, ambas ou nenhuma das opções acima – uma mulher de mais de quarenta ainda não sabe fabricar garras que ferem? Isso também me faz rir às vezes.

Essa carta parte daqui com a esperança de que nada nesse abismo que há entre nós pudesse desviar a palavra de seu alvo. Desejando que todas as letras contornassem esse escudo centenário de metal duro e furassem a carne como se fosse possível fazer isso gentilmente. E que a gente sangrasse só pela beleza do vermelho.

Para @bruxa_travesti